Sentamo-nos numa cadeira amarela. Pousamos os livros, cadernos e lápis numa mesa, também ela amarela. De austero aquela sala de aula nada tinha. Os pensamentos recuaram várias décadas e quando demos por nós estávamos a ver, pela primeira vez, o mar. Imensidão. Medo. Desde esse tempo, e já lá vão mais de 55 anos, Maria da Conceição Marques, a mulher bonita, por dentro e por fora, desta história, nunca mais deixou de o ver. A imensidão do mar é uma bênção na sua vida.
Nasceu na pequena freguesia de Alferrarede, concelho de Abrantes, há 65 anos. O pai, Fernando Pereira, trabalhava na CUF (Companhia União Fabril), na manutenção. “Uma empresa com uma missão social intensa. Tínhamos escola, teatro, desporto e festas em família. Mais de metade das pessoas da minha terra trabalhavam ali”, relembra. A Cuf estava presente, através de polos, em diferentes pontos do país.
Com Conceição Marques é impossível não viajar no tempo. Descreve os momentos com delicadeza e sensibilidade. Quando damos por nós, estamos a viver todos os pormenores, com o mesmo entusiasmo com que partilha a sua história. A sua vida. Os sentidos ficam de tal forma em alerta que sentimos que somos parceiros de viagem, de sentimentos.
Regressando aos bancos da escola. Foi também ali que Conceição Marques, conhecida e tratada, carinhosamente, por São, comeu também pela primeira vez fiambre: “Às 11 horas, um carrinho vinha junto das salas de aula carregado de leite com chocolate ou simples e pão quentinho. Ainda hoje me lembro daquele cheirinho que se espalhava pelos corredores”.
O desporto foi sempre uma das paixões da sua vida e vai acompanhar-nos ao longo destas linhas. Na CUF havia três equipas - hóquei, futebol e basquetebol -, algumas das quais integravam a primeira divisão. Praticou basquetebol, a sua altura também justifica esta opção, durante alguns anos.
A Santa Apolónia, em Lisboa, era o ponto de chegada, para uns dias de férias. Dos comboios saltavam crianças felizes, cada grupo “vestia” uma cor, por forma a identificar a escola do país de onde vinham. Conceição “vestiu-se”, naquele preciso momento, com a sua saia de peitilho cinzenta clara e com uma camisola às riscas vermelhas e brancas. O seu olhar transformou-se. Tornou-se numa menina. Entusiasmada e sorridente, no meio da Santa Apolónia. À porta, vários autocarros da CUF aguardavam a chegada das crianças. Dali seguiam para a Praia das Maçãs, em Colares (Sintra).
Já na colónia de férias, as camas seguiam-se umas às outras. Antes do início das atividades, no dia em que chegavam, tinham de passar uma espécie de desinfeção, não fossem os piolhos atrapalhar as tão desejadas férias. “Havia teatro, missa e uma grande escadaria que nos levava até à praia”, testemunha. “E foi numa dessas viagens que vi o mar pela primeira vez. Fiquei ali, sem dizer nada, envolvida numa enorme mistura de sentimentos”.
De Abrantes, e por exigências do trabalho do pai, aos 10 anos muda-se para o Barreiro, onde permanece durante cinco anos. Os pais separam-se. A mãe, Esmeralda Gomes, vem para Alcobaça. Conceição Marques fica com o pai no Barreiro, até decidirem que deveria vir para perto da mãe. “Nunca foi um casamento fácil. Tenho mais três irmãos. Duas nasceram deficientes. A Julinha vive na Misericórdia de Alcobaça, junto com o seu boneco. É muito apaparicada. A minha mãe continua toda gaiteira aos 88 anos”, diz, enquanto esboça um meigo sorriso.
Andou dois anos na Escola Secundária D. Inês de Castro. Ainda jogou dois anos basquetebol pelo União de Leiria, mas a distância não facilitou a continuação. Além disso, tinha de ajudar a mãe que era costureira. “Fiz muitas bainhas”. Recorda-se bem do dia em que em conjunto com Basílio Martins, Rui Coelho e Diamantino Faustino começaram a juntar algumas crianças e jovens na prática de atletismo. “Tinha 18 anos. Não só dava treino, como treinava, onde hoje são os campos de ténis de Alcobaça. Um dia o professor Mário Costa arranjou duas tabelas de basquetebol. Arranjei uma equipa e foram momentos maravilhosos. Gostei de brincar até muito tarde”.
Num verão, sem que nada fizesse adivinhar, conhece Carlos Marques. A noite estava quente e em conjunto com uma amiga, e respetivas mãe, decidiu dar uma voltinha pela cidade. Havia um bailarico de verão, que integrava a última etapa da volta a Portugal em bicicleta. Vê dois rapazes a aproximarem-se. Avisa a amiga que não quer dançar, mas se “insistirem muito ficava com o mais alto, porque o outro era muito baixinho”. Acabou por dançar com o mais alto. Já vivia em Alcobaça há alguns anos e nunca o tinha visto.
Carlos Marques estava de férias em Alcobaça. Tinha cumprido o serviço militar e agora estava na guerra, em África. “A verdade é que aparecia em todo o lado. Foi falar com a minha mãe porque queria namorar comigo. Conheci os pais dele. Quando dei por mim estava a namorar com um homem que tinha visto apenas alguns dias”.
Durante um ano, trocaram cartas de amor. “Todos os dias me escrevia. Envia-lhe o jornal da Bola todas as semanas. Se eu escrevesse menos, ficava triste e dizia-me na carta seguinte”. Quando chegou, fui com os pais de Carlos Marques esperá-lo: “fui todo o caminho a pensar e se não gosto dele?” Assim que o viu sair do avião não teve dúvidas…
Casa em fevereiro de 1974. Vivia em Lisboa, porque o marido estava a terminar o curso, ao mesmo tempo que trabalhava. Em novembro, desse mesmo ano, e já com as transformações do 25 de Abril, engravida. Disse ao marido que queria regressar a Alcobaça. A terra onde queria criar os filhos. Já havia uma empresa em terras de Cister, que juntava o marido, o sogro e o cunhado. Conceição também para ali foi trabalhar. Trabalhava-se a um ritmo alucinante. A mãe ajudou-a a tomar conta das filhas até entrarem no Jardim-Escola João de Deus.
As filhas herdaram o gosto pelo desporto. A mais velha, a Rita, chegou a ser internacional de andebol. Durante vários anos, o Cister Sport de Alcobaça foi a sua “casa”. Chegou a ser presidente da Direção. “Fizemos de tudo um pouco para juntar dinheiro para darmos melhores condições, mas no dia em que as minhas filhas sairam decidi que também outros pais deviam continuar o trabalho. A presidência está muito bem entregue ao Lorvão”.
Tem quatro netos. As filhas, Rita e Joana, trabalham na empresa dos pais. Adora crianças e confessa que nada mais a comove que o choro de uma criança. Nem sempre foi assim, mas a maturidade trouxe-lhe novas descobertas na sua vida.
As descobertas, nomeadamente de si, levaram Conceição Marques a percorrer os caminhos de Santiago. Já o fez em grupo, mais do que uma vez, e sozinha. Há dois anos, e depois de planear todo o caminho, entrou numa das viagens mais importantes da sua vida. Um período que se lhe exigia de reflexão. “A vida não é só correr de um lado para o outro. É preciso parar e pensar”. Nada melhor do que os caminhos de Santiago para o fazer. “Sou católica, mas não sou praticante. Acredito que tanto se ora no interior de uma igreja, como à beira do rio. O Deus, de todas as religiões, é o mesmo. O meu não é melhor do que o do outro. É, grandiosamente, Deus”, afirma.
O apoio logístico recebeu-o em cada paragem. Pelo caminho, encontrou pessoas do mundo inteiro com quem partilhou algumas histórias. Consigo levava a concha, o cajado e o boletim. “Confesso que não há grandes pensamentos. A natureza é tão forte que só queremos absorver os sons e contemplar as belas paisagens”. A chegada a Santiago é uma grande festa. Revêm-se rostos e assiste-se à missa do peregrino. Um caminho que quer reviver novamente sozinha.
Sempre que pode viaja até ao interior do país. Fascina-a conhecer pessoas e as suas histórias. Há uns tempos conheceu duas irmãs idosas, em Vinhais (Trás dos Montes) que vendiam enchidos de fumeiro numa feira. “Percebi que são felizes com o que têm e não procuram muito mais. Com o passar dos anos, a minha perspetiva de vida mudou”. Maria da Graça é outra senhora que conheceu recentemente, também numa terra do interior. Acabou por criar o hábito de a visitar e leva-lhe sempre alguma coisa. “Agradecem muito. Têm uma vida muito organizada. O almoço tinha de ser às 12 horas, porque a seguir tinha as vacas para pôr a pastar”. Histórias que vão tornando Conceição Marques consciente de outras formas de estar na vida.
Na sua casa, tem uma horta que, este ano, vai aumentar. Está a construir um galinheiro. Para que as possa apreciar e sentir outra forma de estar na vida, já mandou fazer um banco em madeira. “Adoro fazer jardinagem. É dos momentos mais maravilhosos que passo”.
A physioclem surge num momento difícil da sua vida. Já foi operada, duas vezes, à coluna e a um pé. “Tenho um esqueleto muito fraco. Foi uma lesão num cotovelo que me trouxe a aqui, há 14 anos. Assisti ao nascimento desta casa, que tem um serviço exemplar e um sentido de humanização digno de registo. O Marco é das pessoas mais extraordinárias que conheço. Acabámos por nos tornar confidentes. "A physioclem deu-me qualidade de vida e uma nova família”, testemunha.
O caminho faz-se olhando também para dentro. Todos os caminhos que percorremos, em pensamento ou fisicamente, ajudam a desenhar o mundo que precisamos. A maioria das vezes, essa descoberta chega. Só temos de estar predisposto a fazer a viagem…
Luci Pais