Fomos feitos para reagir em situação de perigo. Temos em nós um extraordinário sistema de “Fuga ou Luta” que nos permite reagir de forma rápida para sobreviver. Nos livros de fisiologia, a imagem clássica para explicar este fenómeno é o animal feroz atrás do indivíduo. O Sistema Nervoso Simpático desencadeia uma série de reações que permitem estar num estado de alerta.
Hoje em dia não temos animais ferozes atrás de nós, mas temos muitas e diferentes situações que nos despertam a mesma reação. As situações de perigo potencial. As ameaças. O stress.
O problema é que não fomos feitos para estar em constante estado de alerta.
“When danger persists”
Em resposta ao perigo, as glândulas suprarrenais libertam adrenalina e cortisol, que ativam uns sistemas/funções e inibem outros. No entanto, quando o perigo se mantém por mais tempo, os sistemas ativos vão ficando sobrecarregados e os que estavam inibidos vão deixando a sua marca pela falta de ação.
As mensagens de perigo podem vir da nociceção, mas também de algo de vimos, algo que ouvimos, uma pessoa, algo que fizemos ou que não fizemos, um pensamento, uma crença, um desgosto, uma memória... A mensagem desperta uma série de reações com vários outputs. Um deles é a dor. Mas não só.
Outras reações:
- Sistema respiratório – aumento da frequência respiratória, hiperventilação (que leva a perturbação no equilíbrio do PH sanguíneo.
- Sistema Nervoso Simpático – aumento da sudação, alteração da circulação sanguínea, aumento da pressão arterial, alterações de peso, sensação de ansiedade, perturbação do sono, ataques de pânico.
- Sistema motor – aumento da tensão muscular, movimentos mais rígidos.
- Sistema endócrino – identificação do processo de reparação tecidular, perturbação da digestão, alteração do peso, aumento da flatulência, obstipação, perda da libido, afetação da memória, incapacidade para reter informação, depressão.
- Psicossocial – ansiedade, medo, maior reatividade ao meio envolvente (assustar-se com facilidade, por exemplo), evitar de atividade, diminuição na participação social, comportamentos anti-sociais.
- Percepção corporal – perturbação na noção corporal (sensação de alteração na forma, tamanho, volume), perturbação na noção de lateralidade, possível rejeição de uma parte do corpo, sensação de que uma parte do corpo não lhe pertence (em situações mais graves).
- Sistema imunitário – deprimido, mais dor, cansaço, maior susceptibilidade para infeções ou constipação.
É fácil e não é nada novo reconhecer tudo isto. A persistência do perigo, da ameaça, do stress, é causador de uma série de doenças secundárias. Há quem diga mesmo que o stress é a doença do século.
A dor é simplesmente o output mais reconhecido pelos pessoas. A grande maioria não terá bem a noção de outros outputs (respostas à ameaça) ou simplesmente não faz a ligação entre esses sintomas e o potencial perigo, mas estão todos relacionados. São um output do nosso cérebro.
Agora um caso prático, vivido na primeira pessoa, para ilustrar esta relação, partilha o nosso fisioterapeuta Marco Clemente:
“Habitualmente tenho dor na região cervical. Sei que está relacionado com o trabalho, com as posturas que assumo, com os pesos que ocasionalmente carrego, com o stress, excesso de trabalho, preocupações e conflitos.
Na passada 6ª feira foi a um dos meus fisios. Ele tratou-me muito bem e fiquei bem melhor. Voltarei na próxima semana.
Entretanto hoje de manhã voltei a ter dor. Não intensa, mas uma sensação de pressão, desconfortável. Estranho! Até calhou num dia em que dormi bem, não estou a trabalhar, não carreguei pesos.
Será que o efeito do tratamento já passou?
Se não soubesse o que sei e não relacionasses as coisas, provavelmente na próxima semana chegaria ao meu fisio e diria que até foi bom, mas uns dias depois, sem razão aparente voltei a piorar. Das duas uma, ou intensificamos as sessões ou terei de desistir por falta de resultado.
Mas tenho o conhecimento necessário para perceber onde esteve o trigger. Porque sei, porque me foi explicado, consigo ligar as coisas e entender. Porque entendo sei onde tenho de trabalhar, sei porque é que voltou um pouco. E não foi por falta de resultado do meu fisio, foi porque algo se passou em mim.
E conto-vos. Ontem estava tão entusiasmado e concentrado a partilhar convosco tudo o que aprendi que me esqueci de ligar para a minha família. Hoje de manhã, quando falei com a Vânia, ela chamou-me a atenção e disse-me que a Maria e a Rita estariam tristes. “Caiu-me tudo”. A pressão cervical surgiu. E porque estava atento percebi que os músculos ficaram de imediato mais tensos, não só os da cervical, como também os isquitibiais (pelo menos que eu sentisse). Senti um certo nervosismo interior, um ligeiro tremor (e com isso perturbação da coordenação motora), uma tristeza interior, uma pressão interior difícil de descrever. Até a visão ficou ligeiramente perturbada.
Sim, podia estar a somatizar. Noutra circunstância nem estaria atento a tais sintomas, mas desta vez fiquei, enquanto estava triste. Podia estar estar a somatizar, mas a verdade é que estes sintomas são alguns dos descritos. São uma realidade.
Então podemos dizer que aquilo que a Vânia me disse foi um DIM? Sim poderíamos, se quiséssemos ser só superficiais. Até poderíamos apontar o dedo e escrever no mapa que a pessoa é um DIM ou que o que ouvi foi um DIM. Não é assim. Se formos mais profundos saberemos que não foi o que a Vânia disse que foi um DIM, foi o valor que eu dei ao que ouvi que foi o DIM. Foi o que fiquei a pensar que foi o DIM. Foi o que imaginei que estaria a acontecer com aqueles que mais amo que foi um DIM.
O DIM não está no que os outros dizem ou fazem mas sim na forma como nós ouvimos/interpretamos o que os outros dizem ou fazem.
Arranjei as minhas estratégias para ultrapassar o problema (estratégias de coping - são mecanismos cognitivos e comportamentais para fazer face a estas situações). Se eu não tivesse este conhecimento sobre a dor, como poderia eu relacionar o que pensava com a dor sentia? Sabendo posso gerir melhor a situação.
Pedi desculpa, tentei ligar para à minha filha. Pensei que até tinha servido para alguma coisa, nomeadamente para ter esta experiência agora (dar sentido). Enfim, tentei encontrar alguns SIMs (não muito fortes). O chegar a casa, o sorriso e o abraço deles será com certeza o SIM mais forte. O que fará passar os sintomas.
O que dizemos aos nossos pacientes pode ser igualmente poderoso. A palavra certa no momento certo pode ter um efeito extraordinário. Pode desencadear a tal libertação dos anti-inflamatórios locais e a libertação dos opioides endógenos.
A palavra pode curar.
Mas será a palavra ou a forma como o paciente a ouve. A interpretação que lhe dá. Ou seja, o poder não está na palavra em si, mas sim naquilo que ela desencadeia quando é escutada e lhe é dado sentido. Quero com isto dizer que o poder está SEMPRE dentro de nós. Depende de nós tornar algo (pensamento, palavra, som, cheiro...) um potencial perigo ou um potencial beneficio. Ou seja, um SIM (Safe in Me) ou um DIM (Danger in Me).
Se eu não amasse tanto a minha mulher e os meus filhos, aquelas palavras não teriam tido qualquer impacto. Se o paciente não confiasse tanto em nós, as nossas palavras não teriam qualquer impacto.
Quantas vezes os pacientes nos dizem que quando vêm à consulta é quando a dor teima em desaparecer? Será que pelo facto de marcarem a consulta não estão já a desenvolver um SIM (sabem que vão ser tratados) e com isso já se estão a tratar?
Saber é poder. Utilize o seu conhecimento para percorrer a “Estrada de Bravura”.
Marco Clemente
Fisioterapeuta e osteopata