Fechei a agenda. Fiz um risco nos dias 26 e 27 de abril. Parti para uma nova aprendizagem. Levei uma mala vazia, para regressar com ela cheia. Aprendi que compreender a dor é o mais importante para iniciar a recuperação. Palavras do mestre David Butler. Minhas, agora, também.
Durante dois dias, em York (Inglaterra), Butler, um dos fisioterapeutas mais conhecidos do mundo, ensinou que não importa o diagnóstico ou a condição, há quanto tempo se vive com a dor, onde é ou quão grave é, mas sim que aprender sobre a sua dor pode ser útil. Porém, como tantas outras coisas na vida, a aprendizagem da dor requer paciência, persistência e coragem.
O fisioterapeuta australiano, que nos últimos 15 anos tem desenvolvido um trabalho revolucionário na área da dor e mentor do reconhecido NOI Group, testemunhou que com a Explicação da Dor o paciente aprende a usar o movimento, as emoções, as atividades, a respiração, o planeamento, os amigos, a família, os profissionais de saúde, o trabalho, os pensamentos e as “drogas” internas (seretonina, endorfinas e outros substâncias similares à morfina – hormonas da felicidade) para ultrapassar o problema.
Cada uma das suas palavras completavam-se com exemplos concretos, tornando-se mais simples compreender a Explicação da Dor. Dei por mim a “viajar” para o interior da Physioclem. Passavam-me rostos, histórias, pela mente. Chegou à conclusão, através do seu trabalho, que a dor explicada através da neurociência tem mais resultado que qualquer medicamento. Desencadeia um efeito extraordinário, sem custos, efeitos secundários e dependência de profissionais de saúde.
O que é isto de Explicar a Dor? Como pensar e sentir a dor?
Tudo, refere Butler, depende do contexto: localização, situação em que o paciente se encontra, suas crenças, valores, compreensão e conhecimento que tem de si e do seu problema.
Um longo caminho, mais de 15 anos, e uma ferramenta inovadora: “Protectometer”, que se divide em duas grandes áreas: DIM’s (Danger In Me) e SIM’s (Safe In Me). Um tratamento que deve ser “ministrado” ao longo da vida. Se conhecermos os perigos, saberemos como evitá-los e, assim, afastar a dor. A educação é uma das ferramentas que ajuda a afastar a dor. Quando a dor já está “implantada” é importante perceber a sua origem, para que seja mais fácil afastá-la.
Cada pessoa é um ser único. “Protectometer” reforça esta ideia. Por isso, somos também: o que ouvimos, vemos, cheiramos, provamos ou tocamos; o que fazemos; o que dizemos; o que pensamos e acreditamos; os locais onde vamos. Além disso, as pessoas têm impacto na nossa vida. O nosso corpo manifesta-se face ao que está a seu redor. E pode, mesmo, ficar em alerta. Os sinais são excelentes conselheiros.
“Sentimos dor quando o nosso cérebro conclui que há mais provas credíveis de perigo do que de segurança”, reforça David Butler. E é tão simples percebermos isso. Quem melhor do que nós conhece o próprio corpo?! As dores?! As razões?!
Mas afinal o que é a dor?
Se há uns anos, se definia a dor como um output emergente de um sistema múltiplo - como uma neuroassinatura, construída quando o cérebro concluía que os tecidos corporais estavam em perigo -, hoje, e para Butler, é uma percepção, na qual a experiência é considerada um output para a consciência que reflete o que o cérebro estima ser a melhor resposta.
Na minha cabeça, o puzzle começava construir-se. A dor, finalmente, começa a deixar de ser entendida como algo “mau”, passando a ser vista como uma experiência positiva. Uma estratégia do cérebro para proteger o corpo. Faz ainda sentido acrescentar que a dor crónica não é um “defeito do sistema”, mas a continuação da utilização da estratégia de proteção.
Ativar sensores de perigo, não de dor
A dor é normal, pessoal e real. Todos a sentimos num qualquer momento da vida ou em vários. Porque os exemplos são riquíssimos e elucidam bem esta ideia: Uma palmadinha no rabo do menino, se estiver num contexto de brincadeira não é nada, no entanto, se estiver num contexto de um zanga é muito. São vários os cenários que podemos esmiuçar. O contexto, o momento, a forma como nos sentimos testemunham o grau da dor.
Bioplásticos. Quer esta palavra dizer que podemos mudar. Nada é para sempre, nem estamos condenados a nada. O ser humano tem uma capacidade inata de adaptar-se. Hoje, aprendi. Aprendi muito. Além disso, tenho a certeza que aprender sobre a dor ajuda o indivíduo e, consequentemente, a sociedade. Não mudamos porque sim, mudamos porque faz sentido, caso contrário de nada vale. E quando escolhemos o caminho, é preciso, sem dúvida, alterar comportamentos, que vêm, essencialmente, de dentro para fora.
Longe estão as minhas palavras de querer dizer que devemos abandonar a Terapia Manual. A educação é uma ferramenta. O paciente, que em nós confia o seu tratamento, é a “peça” chave de todo o trabalho, porque participa também na modelação da sua dor. Juntos é possível Explicar a Dor. E entendê-la.
Talvez, por isso, seja fácil escrever: “O paciente acredita em nós, damos-lhe segurança, dizemos-lhe o que ele tem, para que fique descansado. Tratamos e sente-se melhor. A Terapia Manual, pelo toque, facilita a "entrada" na história do paciente. Entramos no espaço íntimo. Conta-nos mais. Expõe-se mais. Confia mais. Torna-se mais fácil cuidar, tratar”. Sabemos que o sorriso ao invés do choro, reverte o processo inflamatório. Sabemos que o apoio da família e amigos, faz toda a diferença - Safe In Me. Sabemos que acreditar no processo de reabilitação, cura as cicatrizes. Já o contrário acumula “feridas” e desequilibra a balança - Danger In Me.
Ser feliz é um SIM. Um abraço é um SIM. Um sorriso é um SIM. Todos estes sentimentos estão associados à libertação das chamadas hormonas da felicidade: seretonina, endorfinas e outras substâncias da família das morfinas endógenas. Estes SIMs dão acesso à nossa caixinha de medicamentos próprios do nosso corpo. A farmácia interna.
Em cada momento livre, os meus pensamentos tornam-se ainda mais óbvios. Olhando para o trabalho que desenvolvemos, na Physioclem, cada palavra de Butler parece fazer ainda mais sentido quando ligamos aos casos que acompanhamos. A forma como as pessoas absorvem os seus problemas, doenças, fazem toda diferença.
Há comportamentos que reforçam o sistema neuroimunitário e neuroendócrino (SIMs):
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CONHECIMENTO E EDUCAÇÃO alteram a percepção de medo, alterando comportamentos;
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PERCEÇÃO DO ELEMENTO STRESSOR - identificar o que nos prejudica, reduz o impacto;
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EXERCÍCIO deverá ser adequado e ajustado ao momento, para que não passe de um SIM para um DIM;
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PERCEPÇÃO DE SAÚDE - quanto mais a pessoa pensa que está saudável melhor será o desempenho da sistema imunitário;
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SISTEMA DE SUPORTE SOCIAL - quanto maior for, mais eficaz é o sistema imunitário. Ter o apoio e a presença dos amigos e da família são altamente benéficos para a saúde/sistema imunitário.
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SISTEMA DE SUPORTE MÉDICO - um bom sistema de saúde dá uma enorme segurança ao paciente. Já a controvérsia de opiniões, entre os diferentes profissionais de saúde, pode ser um potente DIM, porque gera confusão, apreensão, incerteza, medo…
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SISTEMA DE CRENÇAS (pode ser SIM ou DIM, dependendo da crença). A crença de que a doença veio por algum motivo, que tinha de passar por aquilo, faz com que a pessoa aceite o problema.
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HUMOR - rir é um extraordinário libertador hormonal da felicidade, trazendo bem-estar e reduzindo a dor.
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COPING SKILLS - conjunto de estratégias para lidar com o stress. Sabemos que há, através da nossa prática clínica e mesmo da nossa experiência pessoal, estratégias que podemos adequar a determinados pacientes.
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DIETA SAUDÁVEL - Há alimentos pró-inflamatórios e outros anti-inflamatórios (aparentemente os ricos em Ômega 3).
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ESTILO DE VIDA - fumar e o consumo de álcool são pró-inflamatórios. A restrição calórica pode ter um efeito anti-inflamatório.
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NATUREZA - um extraordinário SIM.
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SONO - reparador importantíssimo para o bom funcionamento do sistema neuroimunitário e neuroendócrino.
Tantos outros SIMs se podem acrescentar. Cada pessoa deverá conhecer o seus e potencializá-los.
”Explain Pain" é ensinar às pessoas sobre os processos biológicos subjacentes à dor e estabelecer um tratamento. É ensinar que a dor é uma resposta de proteção.
Perguntas que temos de fazer a nós e/ou aos pacientes:
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Será que o paciente quer saber mais sobre dor e ciência?
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O paciente gosta de aprender?
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O paciente tem capacidade para aprender?
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O paciente tem acesso a mais informação e sabe como usá-la?
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Onde procura o paciente o conhecimento sobre o seu problema?
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Qual o nível literário do paciente, em termos de saúde?
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Que equívocos/ideias erradas/crenças adversas tem o paciente?
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Quais são os conceitos alvo relevantes para este paciente?
“Clean up your language” - Deita os DIMs para lixo e canta os SIMs
De que nos vale estudar a lição, se não a colocarmos em prática?! A mudança de paradigma deve ser feita também pelos profissionais de saúde. Quando a praticarmos, a linguagem do paciente também vai mudar.
A equipa do Butler é focada na evidência, apresentando apenas o que está provado. Porém, nós, os clínicos, devemos seguir também a nossa intuição e experiência, associando-as ao que a ciência diz. Há ainda muito para saber sobre a Terapia Manual, diagnóstico e tratamento de disfunções específicas. A ciência pode estar a induzir a uma banalização dessa especificidade por não lhe conseguir chegar. É importante relembrar as limitações das investigações publicadas.
Como deverá atuar o fisioterapeuta?
Ajudar a pesquisar os SIMs e DIMs será o caminho de excelência. Se explicarmos sobre a biologia da dor, talvez faça mais sentido para os pacientes, dado que ficarão em exposição os factores potencialmente danosos (DIMs) e os potencialmente promotores da saúde, bem-estar, da reparação tecidular (SIMs). Psicologia positiva!
É importante passar aos pacientes que vale a pena ser otimista, desde que realista. Há problemas graves, mas é importante acreditar que a dor pode passar ou minimizar. Apresentar o que se pode fazer é outra questão crucial, usando uma linguagem compreensível. Não temos de ir ao pormenor. Talvez, sejam as metáforas e as histórias as maiores riquezas para explicarem-se os problemas e o caminho a seguir.
O Protectometer pode ser, facilmente, preenchido com os pacientes, com questões simples: Relaciona a sua dor com alguma coisa na sua vida? As suas dores aumentam na presença de alguém, quando se lembra de alguma coisa ou em algum momento do seu dia?
Há muitos SIMs por aí. É preciso estar atento e deixar o corpo reagir. Ele saberá como fazer a transformação interna. Só temos de estar presentes de coração.
Fuga ou luta
Fomos feitos para reagir em situação de perigo. Temos um extraordinário sistema de “Fuga ou Luta” que nos permite reagir de forma rápida para sobreviver. Nos livros de fisiologia a imagem clássica, para explicar este fenómeno, é o animal feroz atrás do indivíduo. O Sistema Nervoso Simpático desencadeia uma série de reações que permitem estar num estado de alerta. Hoje não temos animais ferozes atrás de nós, mas temos imensas situações que nos despertam a mesma reação.
E como reage o nosso corpo, perante algo que nos causa desconforto?
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Sistema respiratório – aumento da frequência respiratória, hiperventilação;
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Sistema Nervoso Simpático – aumento da sudação, alteração da circulação sanguínea, aumento da pressão arterial, alterações de peso, sensação de ansiedade, perturbação do sono, ataques de pânico;
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Sistema motor – aumento da tensão muscular, movimentos mais rígidos;
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Sistema endócrino – identificação do processo de reparação tecidular, perturbação da digestão, alteração do peso, aumento da flatulência, obstipação, perda da líbido, afectação da memória, incapacidade para reter informação, depressão;
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Psicossocial – ansiedade, medo, maior reatividade ao meio envolvente, diminuição na participação social, comportamentos anti-sociais;
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Percepção corporal – perturbação na noção corporal, perturbação da noção de lateralidade, possível rejeição de uma parte do corpo, sensação de que uma parte do corpo não lhe pertence;
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Sistema imunitário – depressão, mais dor, cansaço, maior susceptibilidade para infeções ou constipação.
Não é novidade dizer que stress causa uma série de doenças secundárias. Porém, é importante afirmar que o DIM não está no que os outros dizem ou fazem, mas sim na forma como nós ouvimos/interpretamos o que os outros dizem ou fazem.
A palavra certa no momento certo pode ter um efeito extraordinário. Pode desencadear a tal libertação dos anti-inflamatórios e opioides endógenos. Porém, nem sempre a palavra que possa parecer a mais certa, será recebida da melhor maneira. Partilhar a informação certa, no momento certo, com as palavras certas para determinado paciente. Com o grau de complexidade certo, para o grau de cultura/literacia da pessoa que temos à nossa frente. Para chegarmos com a nossa mensagem, temos de conhecer o nosso ouvinte.
Fim que é o início
O fim jamais é o fim. Foi apenas o fim de dois dias de aprendizagem com Butler, com quem quererei aprender muito mais. O início de uma caminhada. Sempre que percorria as ruas de York, os pensamentos deambulavam entre metáforas e os rostos que me vinham à memória, pela importância das suas histórias. A Revolução Industrial que naquelas terras começou dará belas metáforas. A vida também o é em diferentes momentos.
Sai de Inglaterra mais rico e ansioso por partilhar tudo o que aprendi. Quando acreditamos naquilo que vivenciamos torna-se mais simples explicar. Ora, aqui está um SIM. A oportunidade de dividirmos.
O tempo é só a gota de água. A própria expressão "a gota de água" é uma (boa) metáfora!
Marco Clemente